domingo, 3 de junho de 2012

Jantando no escuro


Sempre gostei de comer em restaurante. Conhecer novos lugares, instigar o paladar com novos pratos e sabores, experimentar temperos diferentes daqueles preparados pela mamãe (uma delícia, mas é sempre bom dar aquela variada!). Em outro país então, a experiência gastronômica é quase obrigatória. Pelo menos para mim, faz parte do roteiro de viagem.

Sendo assim, uma aventura que eu sempre quis encarar era a modinha de comer no escuro. Já tinha ouvido falar desses restaurantes onde todas as luzes são apagadas e a comida é servida no breu total. Ficava imaginando os clientes saindo com a roupa toda manchada de molho, o garfo entrando no nariz ou até mesmo – vai saber! – aquele cuspezinho do garçom sacana em cima da salada. Enfim, queria vivenciar de perto essa proposta de “aguçar os outros sentidos, além da visão, ao saborear um prato”.

Quando estive em Berlim no ano passado, eu e uma amiga chegamos a fazer a reserva no Unsicht-Bar Restaurant, uma conhecida rede alemã de restaurantes no escuro. Chegamos meio atrasadas, a terceira do grupo que ia nos encontrar lá já estava no bar, onde ainda tem luz. Passei direto para o banheiro e, ao voltar, as duas estava com a maior cara de decepção. O motivo era o preço dos pratos: não tinha nada por menos de 50 euros o “menu”. “Não ver o que está comendo e ainda deixar uma grana está fora de cogitação!”, falei para as meninas, que concordaram. Saímos de lá e nos contentamos com uma comida vietnamita – maravilhosa, aliás.

Meses depois, o Groupon (sempre ele!) me enviou por email uma oportunidade de pagar menos para matar a vontade. Por 40 euros, duas pessoas poderiam ter um Dinner in the Dark com cardápio surpresa (!) no Casa del Gatto, um restaurante relativamente conhecido de Bonn. Luisa, minha companheira fiel para aventuras gastronômicas, topou na hora. Agendamos o dia, um domingo, e fomos para lá cheias de expectativas sobre o que teríamos no prato naquela noite.

A cena não poderia ser mais engraçada. Depois de sermos recepcionadas por uma mocinha simpática na entrada, à meia-luz, fomos encaminhadas para o salão do restaurante, iluminado apenas pelo fiapo de iluminação que saía da pequena e fraca lâmpada presa ao chapéu de mineiro que a moça do staff trazia na cabeça. Tropeçando nas cadeiras, ouvindo os murmurinhos dos outros clientes e, sobretudo, rindo muito, chegamos à nossa mesa.
Vem então o garçom, também com o tal chapéu de mineiro e a tal luz fraquinha. “O que as senhoras vão beber”, perguntou, com um sotaque estranho. “Bom, como não sabemos o que vamos comer, ainda estamos pensando no que vamos pedir!”, respondi, em tom de brincadeira, justificando nossa demora na escolha. Também não nos havia sido dado um cardápio.

Daí ele me fala justamente o que eu não queria saber: “Bom, vai ter salada, depois camarão, daí então vem um filé de porco e um tiramisu de sobremesa”...

Talvez no escuro ele não tenha conseguido ver a nossa cara de frustração. “O que esse cara acabou de fazer? Ele nos contou o que deveria fazer parte da surpresa da noite?”, perguntávamos uma à outra. Com voz de quem tinha percebido a enorme gafe, o garçom do sotaque estranho emendou: “bem... isso foi o que eu ouvi na cozinha... por alto... pode não ser isso, né”, disse, tentando consertar o estrago.

Confesso que pensei em ir embora naquele minuto. Tentar reclamar com o mâitre, sei lá. Mas a situação já estava tão maluca que a gente só conseguia rir. “Então, traga coca-cola!”, pedimos. “Bom, pelo menos sabemos que não vai ter nada exótico, nenhum molusco muito estranho para mastigar no escuro!”, concordamos, conformadas.

A salada anunciada chegou minutos depois. Identificamos tomate, alface, cebola e um ingrediente meio mole que parecia ovo. “Salada meio sem-graça, né?”, constatava a Luisa.

O staff do restaurante estava meio lento e despreparado, todo mundo parecia estar meio confuso naquela escuridão. Os garçons levavam muito tempo para recolher pratos e copos, e não tinham ideia de quem já tinha recebido o primeiro ou o segundo curso – ficavam gritando para perguntar quem ainda precisava ser servido.

O segundo prato, o camarão – ou melhor, o molho de camarão, levou quase uma hora para chegar (a gente contava o tempo pelos ponteiros fluorescentes do relógio da Luisa). À espera do jantar, jogamos muita conversa fora, gargalhávamos e contávamos alto coisas particulares sem ter ideia se alguém em volta poderia entender português – e ríamos mais ainda da possibilidade de haver ali algum conhecido.

De repente, no meio do escuro, senti um roçar na minha perna. “Lu, é seu pé?”, perguntei. “Não, Mari, por que?”, respondeu ela, me deixando ainda mais nervosa com esse objeto quentinho não identificado. “Preciso de luz, vou ligar meu telefone!!”. Ao acender a luz do celular, dei de cara com um cachorro grande, escuro, que me viu e rapidamente se deitou no chão. Não segurei o berro de susto. Um cachorro!!! Quem leva um cachorro para o restaurante no escuro?!?! Os donos do pobre logo se tocaram e puxaram a coleira do bicho, sob meu olhar de reprovação – o qual  obviamente eles não viram.

O terceiro prato, o porco, mostrou-se a pior pedida para quem precisa manejar talheres no breu. Eu simplesmente não tinha ideia do tamanho do pedaço que me ia à boca. E a carne estava meio dura, um pouco difícil de mastigar, o que dava ainda mais agonia por já não enxergar muita coisa naquele momento.

Depois de quase quatro horas sentadas na nossa mesa, estávamos loucas para comer logo o tiramisu e ir embora. Nem esperamos o garçom do sotaque estranho voltar e nos levantamos para pagar as bebidas na saída. Percebemos que muita gente tinha feito o mesmo, já estava tudo silencioso em nossa volta. Sem sabermos direito para quem deveríamos pedir a conta, e sem saber o número da mesa, fomos à recepção à meia-luz na entrada do restaurante. Um funcionário nos abordou como se quiséssemos sair sem pagar. Como ele não tinha o controle das contas, pagamos o que afirmamos termos consumimos.

E viva a experiência! Desde então dou ainda mais valor aos pratos mais enfeitados e coloridos. Tirar os olhos na hora de comer, pelo menos para mim, não teve a menor graça.